1.3.08

Precisas é de arranjar um homem...

- Alzira, estou a falar contigo há 10 minutos e tu nada, parece que não me ouves.
- Claro que te estou a ouvir Graciete.
- Quem diria, estás para aí calada a sós com os teus pensamentos e nas arrumações.
- É a minha vida.
- Não é fácil, não é amiga? – Graciete disse-o num tom e duma forma em que estava lá tudo, amizade, compreensão, solidariedade – passas os dias aqui metida no Café, mais os teus cinco filhos e sem companhia, sem ninguém que te ajude.
- Não me posso queixar.
- Ora essa, podes e deves que faz bem à alma. Anda lá, deita tudo cá para fora.
- Agora não posso, tenho muito que fazer.
- Como assim? Já fechaste o Café e se chegares meia hora atrasada ninguém te diz nada, não tens ninguém para te atazanar o juízo.
- Pois, mas tenho que fazer em vez de estar para aqui com conversas.
- Deixa-te de coisas e tira aí duas imperiais para nós.
- Mas só duas e depois ala que se faz tarde. Além disso não quero ser o motivo de uma discussão entre marido e mulher.
- Eu estou farta daquele gajo. Um inútil que só serve para me dar trabalho e dar-me cabo da cabeça.
- Não devias falar assim do teu homem.
- Devia e falo. Nem sei porque é que já não o pus a andar.
- Tem juízo, o que vale é que só dizes essas coisas da boca para fora.
- Olha, se tivesse juízo em vez de só falar punha em práctica as minhas ideias. Estou tão fartinha, filha...
- A vida é feita assim mesmo Graciete, como aquela música do Variações “só estou bem onde não estou”, quando temos não queríamos ter, quando não temos queríamos ter, enfim, feita de desencontros.
- Podes crer, mas já nem o posso ver – naquela noite Graciete estava mais revoltada que nunca com o António, o homem com quem vivia e que tinha sido, mais uma vez, enredado na teia implacável do desemprego – bem sei que ele não tem culpa de estar desempregado, mas se quisesse e tivesse mesmo vontade, há por aí muita coisa por onde pegar.
- Lá isso é verdade, basta ver os emigrantes que chegam e agarram-se a qualquer coisa.
- E não é que no outro dia queria ir com o Fonseca, sabes, aquele vizinho do primeiro andar, outro parvalhão, ao futebol? Como se tivéssemos dinheiro para esses luxos... Os inúteis têm cá uma lata, ou então sou eu que tenho azar. É que o “Benfas” tem um jogo importante, dizia-me ele... Levou uma desanda daquelas.
- E...?
- E meteu o rabinho entre as pernas, todo infeliz e abalou porta fora. Ainda resmungou qualquer coisa mas já nem o ouvi. Foi para o Café do Zé afogar as mágoas, para as pessoas terem pena dele. O que me deixou chateada porque ainda me gastou dinheiro em cerveja.
- O homem também precisava de desanuviar.
- Pois, e chegou a casa tarde e a más horas desanuviado e com vontade de se aliviar. Levou uma nega na hora.

- Vais ver que um dia as coisas se compõem e ele vai ao lugar.
- Nunca ouviste dizer que pau que nasce torto jamais se endireita? Olha é o meu António – o prenome pessoal empregue antes do nome do homem com quem Graciete vivia revelou um carinho escondido no meio de tanta revolta e um sentido de posse de alguém que, apesar das vicissitudes, não está disposta a abdicar desse bem, que no caso do António e para Graciete era um mal. Ironia das ironias.
- Não te fies em todos os ditados populares. Muitos deles devem ter sido inventados por gente pobre e infeliz. Olha que os ricos não querem saber deles.
- Mas muitos deles são sábios.
- E o que é que isso interessa ou contribui para a nossa felicidade?
- Posto assim... nada, a maior parte das vezes.
- Para além disso vocês têm a katia Vanessa e o Camané.
- Dois filhos lindos que são o meu orgulho e a razão da minha existência.
- Outro disparate, que exagero, Graciete.
- Mas é verdade. Olha tira aí outra imperial.
- Nem pensar, põe-te a andar.
- É a última.
- A última foi essa que acabaste de beber.
- Estás a ser chata – como conhecia a amiga e Alzira era mulher que não se quebrava, quanto mais torcer-se, já lhe atirou com a crítica de pé, a ajeitar a bolsa que trazia a tira-colo e pronta para sair.
- Pensa o que quiseres, mas já te disse que ainda tenho muito trabalho pela frente.
- Só pensas nisso, só vives para o trabalho. Devias abrir os olhos e viver mais a vida, Alzira. Até deves ter um belo pé meia, eu cá trocava a minha conta bancária pela tua.
- Pois, mas eu não. E agora desampara-me a loja.
Alzira contornou o balcão, e encaminharam-se as duas para a saída, para abrir a porta do Café a Graciete, que a meio do caminho estreito por entre as mesas amontoadas e já com as cadeiras em cima dos tampos, ainda lhe atirou com um “devias arranjar um homem, uma mulher precisa de um homem”, o que fez com que, pela primeira vez, Alzira desse uma sonora, bem disposta e genuína gargalhada.

“Vem-me para aqui esta gaja dizer mal da vida dela com o inútil do marido e no fim ainda me diz para arranjar um homem, irra que as pessoas têm o que merecem”, pensou Alzira enquanto tirava o avental e o pendurava atrás da porta da cozinha que dava acesso ao balcão. Ia-se já embora, que aquela de ainda ter trabalho para fazer era uma desculpa para se ver livre de Graciete. Chata era ela e mais os problemas dela. “Vou para casa que se faz tarde e ainda quero ver os meus filhotes acordados” disse Alzira para ninguém. Falava muitas vezes sozinha e os filhos até gozavam com ela, mas tinha descoberto, ao longo dos anos, que era uma boa terapia. E os últimos anos da vida dela tinham sido anos de incerteza que ela tinha sabido superar. Meteu-se no seu Fiat Punto e vai de fazer o habitual trajecto entre a Tapada das Mercês e o Cacém onde a esperavam os seus cinco filhos, três meninas e dois rapazes, frutos de três relações amorosas, duas das quais casamentos com papel passado e tudo. Na última parecia que estava a adivinhar, ele a querer casar-se e ela a fugir com o rabo à seringa. Tinha durado o tempo do Zé Maria nascer, que depois o pai tinha escolhido um rumo diferente para a vida dele. Nem era mau homem, talvez fosse mesmo o melhor dos três, e no entender dela não tinha aguentado a pressão. Esta coisa de ser “pai” de filhos de outros dois homens revelara-se uma barra demasiado pesada para o pobre do Tó. Com ele a separação tinha sido pacífica, Alzira tinha sido compreensiva, ou talvez não, talvez já não tivesse tido a mesma força de outrora para lutar. Isso se calhar podia significar que já não gostava assim tanto que valesse a pena lutar. Ou talvez não, talvez gostasse dele mas, ou lhe tinham faltado as forças, aquelas que vêem do coração, ou tinha muitas outras coisas a que se dedicar. Agarrou-se aos filhos e ao pequeno Café da Alzira de que já era proprietária, ou será que já se tinha agarrado a eles e tinha negligenciado a relação com o Tó? Safa, tantas dúvidas a caminho de casa. Dúvidas a mais para um final de dia que tinha sido atribulado. Ligou à Mariana, a filha mais velha, do telemóvel quando estava nas redondezas.
- Já ando por aqui, filha, mas isto não está fácil para estacionar.
- Já te vi, estou na varanda da cozinha. Espera aí, vai devagar... Olha, está um carro a sair ali mais à frente. Vai sempre em frente e é logo ali na outra ponta do prédio, à esquerda.
- Já vi, que sorte, foste a minha salvadora, meu tesouro.
- Ia agora deitar o Zé Maria e a Lúcia, querem que eu lhes conte uma história.
- Vou desligar para não gastar dinheiro, já me contas tudo e hoje deito-os eu.
O Zé Maria e a Lúcia, os mais novos, adormeceram antes da história ter chegado ao fim e Alzira deixou-se cair no sofá da sala, repartindo-o com a Mariana e a Catarina, que viam a novela. O Alberto, esse pirata que estava ao computador, levantou-se e de mansinho, assim com pézinhos de lã, sem ninguém dar conta, foi à cozinha e fez um chá para a mãe. Estava uma delícia, pelo menos para Alzira, e isso era o que interessava.
Depois de se inteirar como tinha sido o dia deles, Alzira fazia-o todos os dias, e já com todos os filhos entregues às profundezas do sono, deixou-se ficar no silêncio da sala, com a televisão ligada mas com o som baixo sem lhe prestar muita atenção e folheando uma revista. Uma paz retemperadora, apenas interrompida pela discussão do casal do andar de cima, coisa que já vinha acontecendo amiúde ultimamente. Hoje ela estava mesmo furiosa, até tinham acordado a pobre da bébé. Bom, pelo menos tinha imperado o bom senso e a discussão tinha ficado por ali. Se tivessem juízo e estivessem atentos, dariam valor ao que tinham e pensou que talvez Graciete tivesse alguma razão quanto aos ditados populares, é que naquele caso aplicava-se o “Deus escreve direito por linhas tortas” e a bébé sem saber, tinha contribuído para apaziguar a ira dos pais.

“Preciso agora de um homem...” disse ela baixinho para não ser ouvida, quando apagava as luzes da sala e se preparava para rumar ao quarto. “...Tenho tudo o que poderia desejar, sou a mulher mais feliz do mundo. Preciso agora de um homem...”

7 comentários:

Anónimo disse...

A Bela Acordada

"Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia era bonita, as pessoas diziam-lhe:
- Eu amo-te.
E iam com ela para a cama e para a mesa.
Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:
- Não gosto de ti.
E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.
A mulher pediu a Deus:
- Faz-me bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre.
Então Deus fê-la feia.
A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias. Só os animais gostavam sempre dela, tanto quando era bonita como quando era feia como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço. No poço, estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar.
Logo a seguir, passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe.
Na cozinha do palácio, as criadas, a arranjarem o peixe, descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe morreu.
As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era tão feia que não era feia. Por isso, quando as criadas foram chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei apaixonou-se pela mulher.
- Será uma sereia ? . perguntaram em coro as criadas ao rei.
- Não, não é uma sereia porque tem duas pernas, muito tortas, uma mais curta do que a outra . respondeu o rei às criadas.
E o rei convidou a mulher para jantar.
Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à mulher quando as criadas se foram embora:
- Eu amo-te.
Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com uma azeitona inteira à cabeça. A mulher apanhou a azeitona e comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:
- Eu amo-te.
Depois comeu a azeitona. E casaram-se logo a seguir no tapete de Arraiolos da casa de jantar."

in Adília Lopes: Obra, Lisboa, 2001.

...

caga nos homens

alzira

tu precisas

é de boa

gaja

,)

Anónimo disse...

A azeitona era das verdes?

CPrice disse...

"sou a mulher mais feliz do mundo .." .. gosto da convicção mesmo que seja só um auto-convencimento neste caso ..
..e gostei deste pedaço de vida Mr. Mike.
Parabéns.

Anónimo disse...

Temos que nos auto-convencer para sermos... ;)
Obrigado, Once.

CPrice disse...

Uiii Mike que essa dava pano para mangas de veste papal .. teremos? :)

Anónimo disse...

É o primeiro passo, depois há que dar outros. Mas sem esse... Experimente auto-convencer-se que é infeliz e veja lá se não passa a ser, assim num instante... ;)
O inverso também é válido... digo eu, sei lá (risos)...

CPrice disse...

essa do "sei lá" dá, infelizmente, esta conversa por terminada (gargalhada) .. ;)

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