2.6.08

Um pensamento triste que se pode dançar.

Lembro-me bem dessa tarde quente de domingo, em Buenos Aires, em que o céu se mantinha teimosamente encoberto. E jamais me conseguirei esquecer do que dizia Discépolo, poeta, compositor e autor de inúmeras letras de tangos. A pequena praça não estava deserta mas as pessoas estavam dispersas, também na sua preguiça e indolência. Foram chegando, parecendo vir do nada, vestidos de negro e, em silêncio e com movimentos resolutos mas harmoniosos, começaram a retirar os intrumentos das caixas. Gente que se cala, cabeças que se viram, olhares intrigados nas caras de uns, sorrisos esboçados nas faces de outros. Os tímidos acordes do violencelo e os gemidos sussurados dos violinos, amparados pelo som vibrante dos acordeões, rapidamente encheram a praceta, parecendo reclamá-la para si num acto de posse absoluto e irresistível. Como o dele, quando a segurou nos braços. Ele impenetrável, sem que um único músculo do rosto desse sinais de vida. Ela tomada em seus braços, olhando-o, sem submissão, com o vestido de alças esvoaçando na tímida aragem que soprou naquele instante em que o tempo parou. Carlos Gardel e Ignacio Corsini sorrindo no firmamento, enquanto os passos ritmados se iniciaram com um vistuosismo que só a paixão daquele tango conseguia ocultar, num bailado nada sereno e envolto numa cumplicidade e intimidade a que os corpos se entregavam com uma energia que só a alma lhes podia dar. Ele e ela parecendo caminhar, pairando, e possuídos pela música que naquele momento só a eles lhes pertencia, numa sintonia sonhada e irreal. O tango é um pensamento triste que se pode dançar, dizia sentidamente Discépolo. Quem serei eu para te contrariar Discépolo? Mas a dança que eu vi não me deixou ver um pensamento triste. O tango que eu senti essa tarde numa pequena praça anónima de Buenos Aires não é romântico, é carnal.

Naquela tarde vi dançar o tango, mais ou menos assim.

26 comentários:

ana v. disse...

O tango não tem nada de romântico, mesmo. É uma luta de galos, um jogo de submissão e domínio levado ao expoente máximo da provocação e da paixão. Um pensamento triste? Não sei, eu acho-o sempre uma exaltação dos sentidos.
Que experiência fantástica ver surgir um tango assim em plena rua, sem se estar à espera!

Luísa A. disse...

Há muita teoria, muita técnica, muito treino e muito virtuosismo. Não sinto que haja muita «carne». Estas danças coreograficamente exigentes dão, aos que as dançam, muito mais prazer pelo rigor da execução do que pelo «embalo do coração». Não sou grande apreciadora de tango, Mike, mas gosto daqueles gestos arrebatados. E de «compatibilizar» as suas duvidosíssimas origens com a verdadeira paixão que lhe votam as minhas tias mais conservadoras. :-)
P.S.: Também, como a Ana e o Mike, não vejo no tango um pensamento triste, embora possa, às vezes, ver um pensamento desesperado.

PSB disse...

Acho o tango uma dança extraordinariamente sensual e de um rigor de execução quase milimétrico (durante os treinos e até adquirirem prática qb, os executantes devem usar slips de aço, só podem).
Tenho pena de nunca ter assistido a um espectáculo destes ao vivo, mas vi, há cerca de 2 anos, o que esteve no Casino Lisboa que achei muito bom (não comparável com o agora realizado).
Registo ainda a boa aproximação feita pelo Al Pacino no filme Perfume de Mulher (?) e vou tentar recuperar um vídeo com um outro de rua que era magnífico, para lhe enviar.
Um abraço

Anónimo disse...

Ana, a mim também não evoca um pensamento triste, mas quem sou eu para contrariar Discépolo?

Luísa, estou inteiramente de acordo consigo apesar de, para que vê, o lado carnal estar lá. Mas é verdade o que diz, sem dúvida alguma.

Pedro, acho que é esse rigor de execução quase milimétrico que, como diz a Luísa, acaba por lhe retirar a sensualidade. E venha de lá esse vídeo, meu acro.
Um abraço.

Anónimo disse...

Meu caro... assim é que é, perdão Pedro.

cristina ribeiro disse...

Quando penso no tango, gosto de pensá-lo como "o pensamento triste" que se torna numa explosão de alegria, sentido.
Claro que, também aqui, as coisas se massificaram, e "ir ver dançar o tango" já não tem aquela magia que lhe esteve na origem.

nocas verde disse...

Mike,
Discordo dos que dizem que não acham o Tango um pensamento triste. É-o, sem dúvida. Tla como é exuberância, felixidade, jogo e sedução, submissão, carne, sexo, amor, desespero e sei lá mais o quê.

O Tango é um poema. E os poemas podem ser aquilo tudo, ou não?

Quanto à dificuldade ensiram-me há muito que quando se vê o quão difícil um movimento é, ele não foi bem feito.

Os bons executantes de Tango (e, por paralelismo, outras artes performativas) fazem tudo parecel fácil. Esquecemo-nos (se soubermos) as dores e os enganos que aquilo deve ter provocado e entregamo-nos aos sentimentos por eles expressos.

E choramos, rimos ou excitamo-nos com eles. Mas o Mike, observador privilegiado desse acontecimento tão fantástcio... sabe do que falo, não sabe?
beijinho

nocas verde disse...

(ainda a tempo...) desculpe os erros. É evidente que queria escrever feliciddade... e outras dislexias que ali escrevi.
(...)

Anónimo disse...

Cristina, acho que esta visão de pensamento triste tem algo de similar com o nosso (triste) fado, mas mesmo assim não nos deixamos empolgar quando o ouvimos bem cantado e bem tocado.
p.s. - empreguei o verbo na primeira pessoa do plural, mas devo confessar que do fado quero distância, muita distância. Um herege é o que eu sou. Tenho apenas um disco de fado. É de Coimbra, cantado pelo Zeca, que foi acompanhado pelo Carlos Paredes. Gosto desse disco.

Nocas Verde, creio que vou desapontá-la, apesar de achar que a entendo. É que eu não consigo olhar para o tango e ver um poema. :(... sorry. E a Luísa, num comentário anterior, e muito lúcido, disse quase tudo, mesmo que toda essa aura em volta do tango vá por água a baixo... :)

fugidia disse...

Hum...
Tal como o fado ou um poema, o tango pode ser muita coisa: belo ou uma desgraça, carnal ou apenas execução perfeita, sem sentimento, triste ou exuberante...
Eu gosto do tango que é carnal, dança de amor, sensualidade, olhos nos olhos, equilíbrio de domínio dos dois... fico arrepiada :-)
Não consigo ouvir o tango postado e não sei dizer se preenche os meus requisitos.
Mas há tangos absolutamente... hum... deliciosos :-)))

O Réprobo disse...

Meu Caro Mike,
o Tango foi a mediação possível na dança do Combate e do Amor, os dois grandes princípios infirmadores da solidão dos guardadores de gado na Argentina.
O meu Amigo chegou a ver um casal que, há uns 4/5 anos o dançava, muitíssimo bem, na Rua Augusta? Tinham um filhote lourinho que recolhia os donativos... Era um caso curioso da técnica perfeita, prescindindo dos ostensivos ares arrebatados e lutadores.
Abraço

ana v. disse...

O paralelismo com o fado é bem achado, Mike, no sentido em que ambos são fatalistas. O tango, como o fado, reflecte um desequilíbrio social e pessoal, e talvez seja por isso que ambos são tão emocionais. Mesmo com uma técnica perfeita (e aqui já só falo do tango, que o fado é mais amador), sem emoção não há arrebatamento possível para quem o vê dançar.
Mas, Mike, Fado de Coimbra não é exactamente Fado. É outra coisa. Sou ultra esquisita com o fado (gosto de muito poucos) mas adoro quando é bom. Mas é preciso conhecê-lo para distinguir o trigo do joio.
Hummm... temos mais uma conversão?
;)

Anónimo disse...

Fugidia, na verdade o tango pode ser muita coisa e há sempre a vertente dos olhos que o vêem e a vertente de quem o sente a dançar. Continuo a achar que nesta matéria, e a senhora em causa que me desculpe o "gastar" do nome, que a Luísa traçou o panorama correcto com o devido afastamento e racionalidade.

Caro Réprobo, outro belíssimo exemplo para este tema, em que o tango não perder virtuosismo e èlan sem que a ele se ligue forçosamente paixão e um sentimento arrebatador. E não, não conheci o caso de que me fala.
Um abraço.

Ana, (risos), neste caso a conversão é, creio eu, um caso de energia desperdiçada... a senhora é esquisita com fado e eu não gosto de fado... ;)

ana v. disse...

Pronto, pronto, já nem tento... se a conversão não pode ser também diversão, não vale a pena insistir.
Mas... nem a Amália, ao menos???
:)

Anónimo disse...

(risos) Ana, deixe-me que lhe coloque as coisas da seguinte maneira: eu tenho um profundo respeito pela Amália, por tudo o que ela foi como a voz e intérprete do fado. Talvez ainda a respeite mais por tudo o que ela representa para uma nação e para um povo. Vou arriscar: assim como o Eusébio para si. Arrisquei, será que petisquei? :)

fugidia disse...

Já vi o video e não gostei, Mike :-)

Este talvez lhe dê um bocadinho mais a ideia do que eu estava a querer dizer (embora seja de um filme e não o que estava a procurar)...
:-)

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
ana v. disse...

Claro que sim. O Eusébio é um símbolo que eu respeito também, pelo que significou e ainda significa. Mas, símbolos à parte, da Amália sobressai um aparelho vocal invulgar que foi aclamado em todo o mundo. E também um bom gosto igualmente invulgar para a época em Portugal (ainda mais tendo em conta as origens humildes dela), na escolha dos poemas e músicas que cantava. A Amália revolucionou o fado, afastando-o definitivamente da pobreza franciscana que era antes e dando-lhe outra dignidade e outra dimensão. Não concorda comigo? Um dia destes ponho no blog uma Amália de que você nem suspeita, Mike...

Luísa A. disse...

Ana e Mike, nunca fui grande apreciadora de fado. E em gravação, nunca consegui digeri-lo. Mas uma noite, num barzinho sombrio, de tecto baixo e atmosfera densa (seria fumo?), situado nas imediações do Castelo, ouvi-o na guitarra e na voz do José Pracana, e rendi-me. :-)

Anónimo disse...

Mas Ana, leia assim, fazendo um esforço para não me chamar teimoso (risos): do Eusébio sobressai uma capacidade invulgar que foi aclamada em todo o mundo. E também um talento igualmente invulgar para a época em Portugal (ainda mais tendo em conta as origens humildes dele), nas jogadas que concebia e nos golos que marcava. O Eusébio revolucionou o futebol, afastando-o definitivamente da pobreza franciscana que era antes e dando-lhe outra dignidade e outra dimensão. Viu? Apenas respeito a pessoa, mas isso não me faz gostar de fado. Veremos se suspeito ou não... :)

Anónimo disse...

Rendeu-se definitivamente, Luísa? A mim não há tectos baixos, atmosferas densas, imediações de castelos, guitarras e vozes que me demovam. Acho que já é tarde, tratando-se de fado... :)

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

eu adoro dançar tango :-)

Anónimo disse...

Júlia, entre risos contidos, tenho que lhe agradecer o facto de me relembrar que tudo começou com o tango e quando damos por ela estamos a desconversar sobre fado, a Amália, o Eusébio, futebol... :)
Eu já vi dançar tão bem o tango que já acho que não sei dançar. Mas gosto. :)

ana v. disse...

Eu já sabia... "tudo o que disseres pode ser usado contra ti", não é?
Mas eu, pelo menos, ainda admito a hipótese de vir a gostar um bocadiiiiiiiinho (hummm, será?) do tal futebol que põe este país a sentir-se gente outra vez, de vez em quando. Pelo menos sou menos teimosa, tenho curiosidade e já aprendi uma coisa preciosa: never say never!

Anónimo disse...

Ana, :)

Denise... disse...

Mas para Discépolo, o que significa esse título:
"Um pensamento triste que se pode dançar" ?

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